Turva hora onde
Principia a noite
E o dia se esconde.
Hora de abandonos
Em que a gente esquece
Aquilo que somos
E o tempo adormece.
Nevoenta hora,
Hora de ninguém
Em que a gente chora
Não sabe por quem.
E tudo se esconde
Nessa hora onde
Por estranha magia
Brilha o sol da noite
E o luar de dia.
Natália Correia
in "Poesia Completa", Publicações Dom Quixote, Lisboa 1999
Sentenças delirantes dum poeta
para si próprio
em tempo de cabeças pensantes
6
Perguntas-me o que deves fazer com a pedra que
te puseram em cima da cabeça?
Não penses no que fazer com. Cuida no que fazer da.
É provável que te sintas logo muito melhor.
Sai, então, de baixo da pedra.
Alexandre O'Neill,
in "Poesias Completas 1951/1986"
DISCURSO
no dize-tu-direi-eu
havia um que dizia
quer dizer é como quem diz
que o mesmo é não dizer nada
tenho dito
Alexandre O'Neill,
in "Poesias Completas 1951/1986"
A exaltação da pele
Hoje quero com a violência da dádiva interdita.
Sem lírios e sem lagos
e sem o gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias
Natália Correia,
in "Poesia Completa", Publ. Dom Quixote, 1999
Este Inverno é longo gélido
E confuso
Na varanda só o vento passa
E o vento olha-nos de esguelha quando passa
Nenhum poema aflora
Entre as linhas finas e aéreas
Da página em branco
Inverno de 1999
In "Obra Poética", Ed Caminho, Lisboa, Outubro de 2010
Nas róseas ondas quando o amanhecer
Carmina a areia, entre rochas altas
Banham-se as belas. Vem amigo ver,
Flutuar meu cabelo à flor das águas.
Ó vem, sedento! Amigo, vem beber
A água que do cabelo me escorrer.
No mar que à areia nácar vem render,
Entre altas rochas, raiando a madrugada,
Banham-se as belas. Vem amigo ver
Meus ombros flutuar à flor da vaga.
Ó vem, sedento! Amigo, vem beber
A água que dos ombros me escorrer.
Na vaga que de brilho a areia asperge
Entre altas rochas, quando a manhã desponta
Banham-se as belas. Vem amigo ver
Meu seio flutuar à flor da onda.
Ó vem, sedento! Amigo, vem beber
A água que do seio me escorrer.
in "Poesia Completa"
PublicaçõesD. Quixote, Lisboa, 1999
se eu não fizer
assim (como hei-de
dizer?) amor
sim amor contigo
muitas (meudeus!) vezes
com preguicinhas boas
tolices ao ouvido
revoadas de beijos
repentes dentes
olhares pestanejados com carinho
oh
nem terei nome
serei "o coiso" "esse aí" o "como
é que ele se chama?"
o que dorme singelo
o que ninguém (ai ai) ama.
in "Poesias Completas 1951/1986"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990
Ana Brites, a coitada,
está no seu canto, enfartada,
a brancura do cabelo
na brancura da almofada,
a roupa da cama, pois,
bem dobrada e alinhada.
Ana Brites, camponesa
do fundo de Portugal,
com um tubo no nariz,
não pensa nem bem nem mal,
vê imagens, as da vida,
que até agora viveu,
vê a Castanha, a vaquinha,
o que no eido ocorreu,
vê-se em pequena, sozinha,
por esses montes, além,
caminho das letras gordas
também das quatro operações,
vê-se já em rapariga,
a alfinetar corações.
Vê o primeiro que pôs
rumores no seu coração,
um moço de grande lábia
sempre alegre e espertalhão.
Vê aquele que a levou,
por uma vez ao altar,
e vai, no seu corpo entrou,
como na casa o ladrão,
para a deixar com um filho
que é a sua devoção.
Ana Brites, a coitada,
sente, às vezes, a dor fina.
Apetece-lhe gemer,
mas é muito envergonhada,
além de não ser menina.
É então que uma senhora,
branca, de sorriso doce,
aparece em boa hora,
põe-lhe a mão no peito murcho
e vai-se embora só quando
a dor fica aliviada.
Ela não sabe quem é,
mas por seu bem ou seu mal,
habituou-se a chamar-lhe:
Senhora do Hospital.
in "Poesias Completas 1951/1986",
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990
Cortina
Peço-te que feches
a cortina
e à sua sombra já estremeço nua
Vens-me cobrir o frio
com o teu calor
e à nossa roda já tudo flutua
Maria Teresa Horta, in
"Só de amor", Quetzal Ed., Lisboa, 1999
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